IN/SANIDADE DAS CORES

 

Quando o mundo pesa de tal modo que a alma se esvazia lentamente,

a loucura é um ato de rebeldia e de sublimação.

Às vezes o quotidiano é feroz demais.

 

Lucinda vivia voltada para dentro de si, envolta na angústia que a prendia ao chão de pés pesados e corpo doído. Habitava no meio do que ela poderia ser, do que nunca fora e daquilo que mostrava por fora, numa máscara plácida de si própria. Por dentro, escapava à ansiedade da perfeição, enquanto as suas unhas roídas pingavam sangue no chão. O paradoxo do sangue e da máscara era um espelho da sua vida, no meio da loucura de viver equidistante do ser incógnito. Lavou as mãos na pia suja de restos de tinta e a água escorreu ensanguentada.

Era no atelier que a dor se transmutava em arte, às vezes bela, outras vezes grotesca. Ela estava em frente do cavalete com uma tela larga, branca e cheia de possibilidades. Estava na altura de tentar enfrentar o nó na garganta e de, mais uma vez, tentar recriar-se a si própria. Era já noite e a Lucinda tinha passado o tempo de luz na minúcia do quotidiano.

A artista trabalhava num supermercado a meio tempo, enchendo prateleiras. Era uma rotina erosiva, mas ela raramente vendia quadros e os materiais eram caros. Ela precisava do dinheiro e lembrava-se do que um professor lhe tinha declarado:

- Pinta como se fosses rica! – ele queria dizer que ela não deveria poupar nas tintas, que a suavidade cremosa das tintas a óleo tinha um efeito melhor quando aplicada espessa. A luxúria da pintura libertava-lhe a ansiedade, enquanto, na realidade do mundo lá fora, de dia, ela só queria gritar até não ter mais voz, rouca de loucura e dor. Mas o seu exterior era calmo, o sorriso acolhedor e o serviço eficiente.

Lucinda aplicou na tela uma camada fina de terra de Siena queimada e, com o espelho à sua frente começou a delinear o seu busto. Os traços gerais estavam bem, daí que estava na altura de começar a dar luz e sombras. Era tempo de dormir, pensou ela, continuaria no dia seguinte. Era essa a maravilha do óleo, estava sempre pronto para a receber.

Deitou-se na cama de lençóis frescos, mas o sono tardava a chegar. Então, deixou o marido a dormir, morno e repulsivo, e regressou ao atelier onde se sentou a fumar, a beber vodka e a imaginar o seu autorretrato. Já cansada do pesadelo da insónia, tomou comprimidos para dormir.

- Talvez seja desta que durmo – pensou a Lucinda e voltou para a cama onde se sentiu a afundar na sonolência.

Mal acordou, pelo meio-dia, num nevoeiro de álcool e comprimidos, a ansiedade apertou-lhe a barriga e tirou-lhe o fôlego. Ela levava dias inteiros sem respirar fundo. Havia muito tempo que mal comia porque não conseguia engolir comida sólida. Depois de tomar dois cafés à pressa, a Lucinda saiu de casa e foi trabalhar no turno da tarde com um sorriso atado à máscara que usava.

Depois do turno acabar, a Lucinda comprou algumas mercearias e, de regresso a casa, parou numa casa mortuária e indagou o preço dos funerais. Queria o mais barato e uma cremação.

- É para uma mulher muito doente - explicou sem detalhes. Há um certo consolo em planear as coisas piores, pensou ela. Escolheu um caixão de pinho, simples e imaginou-se lá dentro, hirta e fria.

Quando a Lucinda chegou a casa, arrumou as compras, limpou a cozinha e a sala, e sentou-se ao computador para confirmar os termos do seu seguro de vida. Valia mais morta do que viva o que a fazia sentir-se deslocada do seu corpo, o mesmo corpo que que em criança tinha levado pancadaria; que tinha feito amor alucinado; que tinha carregado o peso do quotidiano e da contagem dos minutos até ao fim do trabalho, até ao fim do dia, até ao fim do ano. No meio da sua vida estava um buraco feito dessa sucessão de minutos, da erosão do seu ser, até que já não tinha minutos para dar.

Entre a sanidade e a loucura vai um passo de um minuto, equidistante do outro minuto de esperança. A artista encontrava-se no meio de si própria, entre o cinzento de Paynes da tristeza que a afogava e a singularidade da luz. A Lucinda trabalhou no atelier a tarde e o serão inteiros. Não fez jantar, nem falou com o marido. Queria consumir cores e beber a terbentina. Estava na zona, naquele fluxo de energia focada em que tudo é possível. Que enlevo!

No dia seguinte, o retrato inacabado estava poisado no cavalete no meio do atelier de Lucinda. Era um autorretrato a óleo em tamanho natural, ainda molhado à espera que a tinta oxidasse e ficasse seca ao toque. Para além do tom da pele, a figura tinha uma blusa em azul acinzentado com base em cinzento de Paynes. Era a cor preferida da artista, porque nela incorporava as sombras do seu ser. As luzes eram criadas pela mistura de branco. Para a pele, a Lucinda tinha usado terra de Siena queimada, ocre amarelo, vermelho carmino, e quantias variadas de branco para acentuar luz ou sombras. Embora ela tivesse dezenas de tubos de pigmentos variados, ela preferia estas cores a todas as demais e conseguia transformar essas bases em quase todos os tons necessários.

            Ela adorava a sensualidade das tintas a óleo e optava por pinceis retangulares largos. Só usava pincéis finos para detalhes no rosto, todo o restante processo gestual era expansivo, com pinceladas rápidas e certas. Às vezes, um quadro fluía, outras vezes era uma frustração e um trabalho dorido por isso Lucinda costumava pensar que ser artista era enveredar por um processo bipolar de êxtase seguido de depressão, era como dar voltas numa roda gigante à solta num percurso enlouquecido com destino incerto. Naquele momento, mais do que nunca, Lucinda estava obcecada com o seu retrato que lhe parecia hirto e sem vida.

Já era a quarta tentativa de terminar um autorretrato, pois as anteriores tinham sido rasgadas, cortadas, com a moldura quebrada, e postas no lixo. Lucinda não compreendia a razão por que ela não conseguia ultrapassar os obstáculos criativos e dar vida à sua própria imagem. A sua frustração deu lugar a dúvidas sobre a sua capacidade criativa…

Como sempre, ela trabalhava pela noite dentro até que, de madrugada, caía na cama exausta e dormia até muito tarde. Normalmente, a artista não acordava senão pelo meio-dia, mas nos últimos tempos ela estava pior. Era como se o retrato lhe estivesse a sugar os ânimos e a sua energia. 

Lucinda tinha experimentado tudo, desde trabalhar com música para soltar os gestos, a beber vodka para desprender os nervos, até tinha posto de lado o espelho e tentara pintar de memória e instinto. Nada tinha resultado! A pintura, embora tecnicamente correta, continuava rígida, sem alma.

Mais uma vez, a artista ali estava no seu atelier às três da madrugada a experimentar novas estratégias, ignorando o marido e o trabalho do dia seguinte, a observar o seu trabalho minuciosamente. Tirou fotografias com o telemóvel e olhou-as com muita atenção. Virou o quadro de pernas para o ar e voltou a tirar fotografias. Colocou a imagem na dimensão certa e usou um espelho para ver o reflexo e discernir como dar vida ao retrato. Talvez fosse a cor que estivesse incorreta, ou as sombras que não estivessem suficientemente acentuadas. No meio da sua frustração e delírio, pegou na faca de trabalho e cortou o seu pulso esquerdo. O sangue começou a escorrer para o chão de cimento, mas Lucinda, insensível à dor, agarrou na palete que tinha estado a usar e começou a misturar o sangue com o óleo.

- Agora sim, isto mesmo! Disse em voz alta.

Entusiasmada com os resultados, voltou a aplicar tinta molhada sobre tinta molhada e o sangue continuava a escorrer. O quadro parecia estar mais vivo, as cores e as pinceladas transformavam o retrato e Lucinda continuou a pintar até que em vez de sangue ela começou a escorrer carmino, ocre, terra de Siena e muito branco misturado. Quanto mais vital ficava o retrato, menos força tinha a artista, até que exausta se sentou numa cadeira de plástico a admirar o resultado. Entre a sanidade e a loucura vai um esvair de um instante, equidistante do outro instante de lucidez. A obra estava perfeita e Lucinda parecia ter morrido numa euforia desmedida.