CAPÍTULO UM

Sentada num poleiro acima do mar, N´kura contemplava a praia e o oceano que dominavam a vista. Ela estava bem agasalhada com peles e um chapéu de palha, sentindo que a sua perna iria abrir-se e rebentar com um melão maduro. Os ventos do mar aliviavam-lhe a febre, mas a dor na sua perna era uma miséria pulsante.

O oceano era todo abrangente, a Grande Mãe de Tudo. Assim chamavam as pessoas à grandeza frequentemente feroz que também providenciava comida quando Ela estava calma e suave, a Deusa do mar e da terra. Milhares de anos mais tarde, aquela área seria chamada de “Praia das Galés”, em Portugal, e as suas formações rochosas dariam azo a piscinas naturais deleitosas onde N´kura costumava tomar banho e pescar com uma lança de madeira. A praia comprida produzia mexilhões bastantes para alimentar a tribo dela e, na maré baixa, havia lapas com fartura nas rochas.

A dieta das pessoas consistia principalmente de peixe e mariscos, suplementada por bagas, sementes, raízes e roedores ocasionais encontrados na costa, a alguma distância do mar. O campo estava suficientemente afastado da costa que a areia não incomodava e tinha dois riachos a desaguar no mar.

As histórias diziam de um tempo em que havia caça grada, mas agora só existiam animais pequenos. Às vezes aparecia um viajante de longe, por terra dentro, que trocava peles por conchas polidas e contava histórias de cabras que eram tão boas de comer. Contudo, à beira-mar, as pessoas raramente comiam carne, dependendo da Mãe de Tudo para fornecer o necessário. A tribo de N´kura frequentemente passava fome no inverno quando o mar estava bravo.

A vida era dura para o seu pequeno grupo de pessoas, tantas como os dedos das suas mãos. A última criança nasceu do seu corpo seis verões atrás. Um rapaz que era o orgulho da tribo. Ele era esperto, rápido e um bom angariador de comida. Contudo, seguindo o exemplo dos quatro homens do grupo, ele zangava-se num instante. Às vezes, ele explodia como as vagas bravas contra as rochas. Os homens adultos eram velhos, tendo já vivido muitos invernos, e não se moviam com rapidez, mas tinham um feitio volátil, especialmente quando era dirigido a N´kura. A sua outra criança era uma menina, uma coisa pequena com oito verões de idade. Era o seu consolo. Tanto a mãe como a filha eram de estatura pequena, pele escura e com cabelos pretos compridos. Contudo, enquanto N´kura tinha olhos azuis brilhantes, a sua filha, Biba, tinha olhos escuros como o resto das pessoas da tribo.

            N´kura tinha sido ainda uma criança quando ela foi raptada por essas pessoas. Naquela altura, os homens eram jovens, fortes e capazes de correr longe. As raparigas eram valiosas porque cresceriam e seriam aptas a procriarem e produzirem mais crianças para alargarem a tribo. Portanto, muitas vezes havia ataques entre tribos, tanto para agarrarem mulheres ou recursos. N´kura, contudo, foi uma desilusão para a sua gente porque só foi capaz de gerar crianças duas vezes.

Desde o seu acidente, há muitos dias, que a mulher pequena e cheia de dores tinha estado afastada da tribo. N´kura tinha levado os resíduos para o monte de conchas quando tropeçou e caiu por cima delas. As bordas afiadas das conchas cortaram-lhe o corpo todo em feridas superficiais. Contudo, uma concha cortou tão fundo dentro da perna que N´kura teve de fazer força para a retirar. Com o corpo a sangrar, ela arrastou-se ao mar para se lavar.

As mulheres não a ajudaram porque detestavam N´kura. As três mulheres do grupo eram mais velhas e nenhuma tinha uma criança. Cabelos de Cinza tinha gerado três bebés, mas nenhum sobreviveu à infância. As outras duas mulheres sangravam todas as luas e frequentemente duas vezes por lua com muitas dores. Por isso, elas eram cruéis com a mulher mais nova que não nasceu da tribo.

Entre os punhos dos homens e os ataques verbais das mulheres, N´kura tinha uma vida solitária e dolorosa, só aliviada pela sua filha, Biba. Um dia, dentro em pouco, a vida da rapariga ir-se-ia transtornar porque o olhar masculino tinha mudado recentemente. A Biba estava a ficar madura e iria sangrar dentro de algumas luas. N´kura receava pela sua filha à mercê de quatro homens velhos, sem um rapaz para escolher.

Depois de N´kura se ter magoado, a perna começou a inchar, a ficar quente, e ainda se tornou pior. Ela desenvolveu uma febre, sentindo-se alternadamente quente e fria. Ela tremia o tempo todo. Então, houve uma grande erupção de pus da ferida e linhas vermelhas, como se fossem desenhadas a sangue, corriam pela perna acima. Foi nessa altura que as pessoas exigiram que ela se afastasse do campo, com receio que ela chamasse demónios para atacar toda a gente. A Biba foi a única que a ajudou a construir um abrigo com canas e palha entrelaçada, tão longe do campo que a N´kura não via ou ouvia as outras pessoas. Foi também a sua filha que lhe trouxe alguma comida uma vez por dia.

Agora sozinha, ela indagava-se por quanto mais tempo ela ia durar porque a dor e o mau cheiro da perna estavam a piorar. Ela não podia pôr peso na perna e, entre a febre e a dor, ela só conseguia andar poucos passos.

Do seu promontório e entre as lágrimas salgadas, N´kura olhava ao longe. A longa praia branca, rochas, o oceano à sua frente, e a savana atrás. Com dificuldade, ela levantou-se ajudada pela força da sua lança. O Pai Sol estava a descer no horizonte por isso ela devia voltar para o seu abrigo.

Como era seu costume, N´kura usou a sua lança para escarafunchar a terra à procura de raízes comestíveis. A caminho do seu abrigo, a mulher baixou-se dolorosamente para agarrar uma raiz suculenta e espessa. Embrulhada na raiz estava a coisa mais maravilhosa que ela já tinha visto. Uma pedra achatada do tamanho da sua mão, cinzento-escura, brilhando facetada com uma luz fria. Ela escondeu a pedra na dobra da sua saia de palha e, o mais depressa possível, considerando a sua perna dolorosa, N´kura procurou o isolamento do seu abrigo. Devido à dor e à febre, ela estava exausta. Assim, deitou-se sobre as peles de animais, colocou a pedra entre os seus seios flácidos e pegou no sono, contente com o que encontrou.

A alvorada no dia seguinte era clara e suave. A Grande Mãe de Tudo sorria com ondas brandas e o céu azul. N´kura acordou sem febre, mas a dor continuava à medida de cada batida do coração. Ela ainda tinha alguma água doce numa tigela de terra queimada, por isso matou a sede e decidiu fazer um colar com o que encontrou. Ela tinha uma broca de pedra aguçada e colocou a pedra brilhante numa concha larga. Sentada de pernas cruzadas, N´kura aguentou a pedra sobre a concha com a mão esquerda e, com a mão direita, torceu a broca várias vezes até fazer uma depressão na pedra achatada. Era mais fácil do que ela pensava porque esta pedra de luz fria não era tão dura como as pedras do mar. à medida que a broca perfurava a pedra, flocos e pó caíram dentro da concha.

Quando o Pai Sol estava alto no céu, a Biba veio com um punhado de sementes e algumas lapas. Ela perguntou à mãe o que estava a fazer:

- Um colar secreto. Não digas a ninguém.

A Biba foi ao riacho mais próximo buscar água para a sua mãe, observou a sua atividade por um tempo e depois aborreceu-se e foi-se embora.

A mulher levou um dia inteiro para fazer um buraco na pedra brilhante. As suas mãos doíam de aguentar e torcer a broca. A sua perna doía e escorria pus. Ela limpou a porcaria com erva e continuou a fazer o buraco até poder ver de um lado para o outro da pedra.

Quando o Pai Sol transformou o céu na cor de flores, a Biba sub-repticiamente saiu do campo e trouxe um fio forte de palha entrelaçada. Ela abraçou a sua mãe e deixou-a no entardecer. Sozinha no seu abrigo, N´kura enfiou a palha entrelaçada através da pedra e colocou o colar ao pescoço. Não era pesado como outras pedras e descansava entre as mamas. Depois, ela teve uma vontade irracional de consumir o pequeno monte de pó e flocos que se tinha acumulado na concha. Ela pegou num bocadinho de pó entre os dedos e experimentou na boca. Não era amargo, mas sabia a areia seca. Então, ela derramou o pó e os flocos no resto da água, misturou com um dedo e consumiu a substância.

N´kura deixou-se escorregar dentro do seu monte de peles e ficou inconsciente para tudo, exceto as visões que viu e sentiu. Uma longa viagem através da escuridão e tanto frio. Épocas sem fim a viajar através de mais escuridão e mais solidão, procurando para além da exaustão. Uma vontade enorme de comunhão e inteireza. Até agora.

N´kura ficou inconsciente durante três dias, em convulsões e a cheirar mal. Ela suou, vomitou, cagou e mijou o que quer que tinha no seu sistema. No último dia a pele descolou-se e ela trocou de pele como uma cobra.

N´kura acordou com a sua imundície. Ela estava sozinha, estava escuro e ela tinha muita sede. A mulher rastejou para fora do abrigo fedorento, rolou na terra e percebeu que não tinha dores. Ela vacilou a caminho do riacho, entrou e bebeu o mais que podia. Ela vomitou. Então, caminhou mais acima da corrente até estar segura de que a água estava limpa, e bebeu com cuidado desta vez. Depois, N´kura agarrou num punhado de areia e esfregou-se cuidadosamente porque a sua pele estava muito sensível. A mulher caminhou novamente contra a corrente, atirou a sua saia de palha para a margem e continuou a sua limpeza. Foi então que ela se apercebeu que não tinha cabelos ou pelo no corpo e que a sua perna estava curada. Não havia qualquer ferida. Exausta, a mulher agora limpa, saiu do riacho, encontrou uma superfície seca e plana, deitou-se na terra e dormiu.

Quando N´kura voltou a estar consciente, o sol mal rompia o horizonte. Ela sentia-se estonteada de sede, fome e ecos das suas visões. Ela bebeu da água cristalina até ficar saciada e andou a caminho da sua tribo nua e careca, exceto pela pedra pendurada ao pescoço. A pequena mulher esperava ser bem-vinda entre as pessoas. Afinal, ela estava inteira e limpa. Contudo, quando Cabelos de Cinza a viu aproximar, ela começou num lamento aos gritos e as pessoas saíram numa pressa dos seus abrigos. Elas também gritaram e atiraram pedras para a fazer sair. N´kura não compreendeu o que se passava, até a sua filha correr para ela e exortou-a a ir-se embora:

- Mãe, eles pensam que tu és um fantasma ou demónio. Tens de fugir! Eles querem matar-te!

N´kura sentiu-se aflita e pediu à filha:

- Biba, por favor vem comigo. Ajuda-me!

- Vou ter contigo ao pé das poças quando o Pai Sol adormecer. Está pronta para sairmos nessa altura e para irmos muito longe.

N´kura correu para o seu abrigo imundo. Tinha as coisas que ela precisava. Ela enrolou os seus poucos pertences nas peles sujas: uma bolsa com conchas polidas que brilhavam como madrepérola, uma faca de pedra, a broca de pedra, a sua maior concha e a tigela de terra queimada. Depois disso, a mulher caminhou até ao fim da praia, agarrou num ramo de algas e mastigou. Ela apanhou conchas variadas e comeu os bocadinhos saborosos de dentro, usando um pau para os retirar. As conchas de trompete e os búzios ela guardou porque seriam valiosos para trocas. Com a fome de algum modo satisfeita, N´kura usou a faca de pedra para cuidadosamente forçar lapas das pedras. Ela comeu-as também, mas atirou as conchas para o mar. Ela encontrou um lugar escondido com um fundo plano e deitou-se para dormir com o seu rolo nos braços e o colar entre as mamas.

Antes do anoitecer, N´kura já estava sentada e à espera. Ela ouviu os passos da sua filha antes de a ver. Ela levantou-se e reparou que a Biba trazia o seu próprio rolo de peles.

- Filha, - urgiu a mãe, - temos de nos apressar. Deixa-me carregar o teu fardo.

N´kura colocou ambos os rolos às costas, verificou que o peso estava bem distribuído e, tanto mãe como a filha, afastaram-se rapidamente daquele lugar, seguindo a costa à sua direita. Já era bem escuro, mas elas conheciam bem o terreno. N´kura andava à frente e Biba seguia-a. Elas estavam a dizer adeus à única vida que conheciam, apesar de ter sido miserável. A mulher simplesmente ansiava a sobrevivência.